McDonald's e Coca 'piratas', internet clandestina e câmbio paralelo: como brasileiros vivem na Rússia após 3 anos de guerra na Ucrânia
25/02/2025
(Foto: Reprodução) As sanções contra a Rússia por causa da invasão da Ucrânia transformaram o cotidiano dos brasileiros que vivem no país. Eduarda Moreira estuda medicina em Kursk, na Rússia
Arquivo Pessoal
Eduarda Moreira, de 24 anos, vive há seis anos na Rússia e, na metade desse tempo, o país esteve em guerra com a Ucrânia.
A brasileira, que foi para lá estudar medicina, viu o país se transformar com o conflito e as sanções impostas à Rússia por ter invadido o vizinho.
Eduarda vive na cidade de Kursk, que fica próxima da fronteira com a Ucrânia e é um dos epicentros do conflito.
A estudante afirma que a comunidade brasileira na Rússia "é pequena e todo mundo se conhece".
Havia cerca de 600 brasileiros vivendo na Rússia em 2022, segundo os dados mais recentes do Itamaraty.
McDonald's e Coca-cola 'piratas'
Muitas empresas deixaram o país, e várias marcas famosas encerram suas operações na Rússia após as sanções internacionais, o que também foi sentido pelos brasileiros.
"Lojas como Zara, H&M, McDonald's e Starbucks foram fechando aqui. Coca-Cola você não encontra mais", diz Eduarda.
Rússia criou sua própria versão da Coca-Cola, na ausência da original
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O governo russo passou a incentivar financeiramente empresas russas a produzir bens que deixaram de ser importados devido à saída de multinacionais ou à impossibilidade de negociação em solo russo por causa das sanções.
Assim, a Rússia tem hoje um refrigerante semelhante à Coca-Cola, chamado Добрый Cola (algo como Boa Cola, em tradução direta do russo) e uma rede de lanchonetes como o McDonald's, a BkYCHO- И TOЧKA (que significa "gostoso e ponto").
"Os lanches são muito parecidos. É realmente 'gostoso e ponto'", brinca Eduarda.
Já o refrigerante tem gosto semelhante ao de marcas mais baratas do Brasil, diz João Guilherme Carvalho, jogador de futsal de 27 anos que vive em Moscou.
Apesar das mudanças, a bebida original circula em mercados paralelos da capital a preços elevados, contam os brasileiros.
As restrições também dificultaram o acesso à internet e a aplicativos populares. "O único que ainda funciona bem é o WhatsApp", diz Eduarda.
Embora o Telegram, que é russo, esteja disponível, os brasileiros continuam a usar de forma clandestina plataformas como Instagram, YouTube e TikTok por meio de VPN, uma tipo de rede privada que ajuda a contornar os bloqueios por meio da conexão com servidores de internet de outros países.
Outra medida adotada contra a guerra foi a exclusão dos bancos russos do sistema Swift, que permite o envio rápido e fácil de dinheiro através de fronteiras.
Sem a possibilidade de transações bancárias internacionais, parte dos brasileiros que vivem no país criaram uma espécie de sistema de câmbio paralelo para trocar o dinheiro que têm em contas no Brasil para rublos, a moeda local.
"Começamos a trocar moeda de forma informal com outros brasileiros que vivem aqui. Eu transfiro reais para eles no Brasil, e eles nos devolvem em rublos aqui", conta à BBC News Brasil uma brasileira que será mantida em anonimato por questão de segurança.
"Como todos precisam trocar moeda e se beneficiam, esse acabou sendo um meio simples e eficiente."
João Guilherme também fala das dificuldades que vieram após a remoção da Rússia do Swift.
"Antes, era possível mandar [dinheiro] direto pelo banco, mesmo com taxas. Agora, isso acabou", conta.
Outro impacto da guerra no dia a dia foi a inflação, explicada por uma combinação de fatores.
Entre eles, estão causas que vêm afetando vários países, como instabilidades climáticas, custos de produção elevados e ciclos sazonais.
Mas há também fatores particulares da Rússia, incluindo a própria guerra e suas consequências.
A dependência da Rússia em relação ao petróleo e os efeitos das sanções sobre esse setor ajudam a explicar as pressões inflacionárias no mercado interno, ainda que o impacto das restrições tenha sido menor do que o esperado inicialmente.
A retomada do crescimento econômico no país, embora modesta, também tem contribuído para o avanço da inflação, uma tendência comum em períodos de recuperação econômica, de acordo com os especialistas.
O governo russo investiu fortemente em programas para substituir importações e criar mecanismos que minimizem os impactos da crise, explica Daniela Vieira, professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e coordenadora do Observatório Rússia-América Latina (Ruslat).
"Esses esforços, embora tenham impulsionado um crescimento econômico moderado, também impactaram as taxas inflacionárias, especialmente no setor de alimentos."
Os brasileiros têm vários exemplos do impacto da inflação em seu cotidiano.
"Uma bandeja de frango custava 150 rublos e agora está 300. Esse foi o maior impacto para mim", conta Eduarda.
A guerra também aumentou o custo das passagens aéreas para o Brasil. Eduarda conta que as viagens, antes em torno de R$ 3 mil, agora podem custar até R$ 20 mil.
Para economizar, muitos optam por trajetos mais longos, como pegar um ônibus para a Finlândia ou Estônia e, de lá, um voo para o Brasil.
"Todo esse trajeto dura umas 30 horas e é bem cansativo", diz a estudante brasileira.
João Guilherme também se queixa do custo das passagens e afirma que agora está mais difícil voltar a Londrina (PR), onde tem parentes.
"As companhias aéreas que faziam a rota Moscou-Guarulhos também diminuíram", diz o jogador.
'Me acostumei com as sirenes'
Os sons das sirenes e das explosões se tornaram parte da rotina de Eduarda — a cidade de Kursk fica a 120 km da Ucrânia.
Eduarda diz que as mudanças na rotina já foram perceptíveis logo no início do conflito, em fevereiro de 2022.
"Começamos a ver militares e tanques na rua. Todo mundo sabia o que ia acontecer", lembra a brasileira.
Apesar dos ataques em seu entorno, a estudante de medicina conta que, hoje, a vida segue sem grandes alterações. Ela pretende concluir o curso de medicina na Rússia e só depois voltar ao Brasil.
"Eu saio de casa com barulho de sirenes e bomba mesmo. Vou para barzinho, saio com os meus amigos, vou para mercado, aula, tudo normal. A vida não parou", relata a estudante de medicina.
No entanto, ao refletir sobre a situação, ela se surpreende por já considerar esses sons parte do cotidiano — algo que, ela pondera, jamais deveria ser normal.
Silvio também relata seguir a vida normalmente. Por morar perto da capital, os efeitos da guerra parecem mais distantes da realidade dele.
"O máximo que vi foi destroços de um drone que caiu em um prédio, mas nada que me afetou. Vejo mais notícias mesmo", diz o preparador físico.
Ele planeja seguir sua carreira na Rússia e, por enquanto, não tem planos de retornar ao Brasil.
Já João Guilherme afirma levar a rotina também de forma "tranquila" e, por ora, também não deve voltar ao Brasil.
"Eu tenho um contrato até 2027 aqui na Rússia, então eu pretendo, no mínimo, ficar aqui até essa data."
O jogador de futsal João Guilherme Carvalho vive em Moscou
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Raízes do conflito
O conflito na Ucrânia se intensificou com a invasão russa em fevereiro de 2022, mas tem raízes profundas no colapso da União Soviética em 1991 e nas décadas seguintes de tensões geopolíticas.
A disputa entre Ucrânia e Rússia gira em torno de questões territoriais e políticas, particularmente envolvendo a região de Donbass e a península da Crimeia — áreas de importância estratégica para Moscou.
A Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, é vista como um ponto chave para os interesses militares russos, sendo a única saída da Rússia para o Mar Negro.
"Exercer controle sobre a península e os territórios de acesso é vital para o projeto de poder russo. Por outro lado, a região pertence à Ucrânia desde a década de 1950, o que torna a disputa extremamente complexa", explica Daniela Vieira, professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e coordenadora do Observatório Rússia-América Latina (Ruslat).
O panorama também é influenciado pela relação da Rússia com o Ocidente, em particular pelo avanço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre regiões historicamente influenciadas por Moscou.
Segundo Vieira, esse movimento gerou uma sensação de insegurança no Kremlin, agravada pelo desmantelamento de acordos de dissuasão nuclear, que equilibravam as potências desde a Guerra Fria.
A Ucrânia também representaria um corredor estratégico para a Rússia em caso de invasões do Ocidentem destaca Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM.
"Há uma memória histórica na Rússia de Napoleão e da Segunda Guerra Mundial que reforça a resistência à influência ocidental nessas regiões", afirma Trevisan.
De acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, o papel das Nações Unidas (ONU) e da Otan em conter o conflito tem sido limitado.
A ONU, enfrentando bloqueios no Conselho de Segurança devido aos vetos de Rússia e Estados Unidos, tem uma atuação praticamente nula, observa o professor.
Já a Otan, embora seja uma aliada natural da Ucrânia, evita um envolvimento direto devido ao risco de uma escalada nuclear.
O impacto das sanções econômicas contra a Rússia tem sido ambíguo, segundo os especialistas. Apesar de pressionarem o governo russo, elas não conseguiram afetar tanto a economia do país, que continua a exportar petróleo e fertilizantes para países como Turquia e Brasil.
"Essa dependência [da Rússia] de aliados como China e Irã tem, por outro lado, reforçado a divisão entre democracias liberais e regimes autocráticos, podendo ser caracterizada como uma 'Guerra Fria 2.0', explica Leandro Consentino, professor de Relações Internacionais do Insper.
Para Trevisan, a guerra marca o fim de um contexto geopolítico que surgiu após a Segunda Guerra Mundial e o início de uma nova ordem mundial — onde a China assume uma posição de liderança, enquanto a Rússia se torna um parceiro menor.
Com um fim incerto à vista, o futuro do conflito dependerá de fatores como a atuação dos Estados Unidos e possíveis negociações para um cessar-fogo.